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  • Este artigo tem como objetivo apresentar uma visão institucional da clínica, propondo, como elemento fundamental para dimensionar a prática da mesma, a construção de determinada noção de ética. A análise institucional é utilizada como ferramenta para um entendimento histórico-social do sujeito e, portanto, das práticas clínicas a ele voltadas. Procurando desfazer a falsa dicotomia entre clínica e política, opomo-nos a uma suposta neutralidade, na medida em que concebemos toda e qualquer prática como implicando um posicionamento político imanente. A perspectiva ética mencionada contrapõe-se a uma subordinação acrítica a um corpo teórico hermeticamente fechado, propondo uma relação de diálogo entre teoria e prática, privilegiando uma prática clínica voltada para a produção do novo e da diferença, ou seja, de processos de singularização, em detrimento de mecanismos de reprodução de modos dominantes de subjetivação. No que diz respeito à loucura, além de viabilizar a construção de modos de vida novos e autônomos, trata-se de conferir legitimidade e consistência aos territórios já construídos, quase sempre política e culturalmente esvaziados. Por fim, é discutida a experiência de estágio no Espaço Aberto ao Tempo, serviço de atenção diária em Saúde Mental, cuja prática assistencial – em permanente construção – vem se consolidando como experiência clínica singular.

  • Murilo Rubião é sem dúvida um dos nomes mais representativos do gênero fantástico da literatura brasileira. Talvez a pouca extensão de seu trabalho como contista tenha colaborado para torná-lo pouco conhecido do grande público, talvez a crítica severa que em muitas e nem sempre veladas ocasiões o acusou de plágio de Kafka o tenham assim tornado. Assim como Kafka, Rubião retratou a realidade do cotidiano de uma forma fantástica, quase-mágica, muito embora realista. Realidade e fantasia unem-se na obra de ambos os autores, fundem-se, ora por eles tornarem o impossível verossímil, ora por tornarem o hodierno inacreditável, inaceitável apesar de verdadeiro. Interessa-nos aqui realçar a abordagem fantástica que Murilo Rubião faz das cidades, de seu cotidiano e seu modo de funcionamento, e é aí que sua proximidade de Kafka se torna valiosa, pois se Rubião é pouco conhecido, Kafka não o é, o que torna mais fácil ao leitor compreender o universo de Rubião. A dinâmica das cidades e os absurdos com os quais se confrontam os protagonistas dos cinco contos aqui selecionados para proceder à análise − A Cidade, O Edifício, A Fila, Os Dragões e Botão-de-Rosa − são extremamente semelhantes àqueles encontrados por Josef K. em O Processo, ou ainda pelo agrimensor K. de O Castelo. O que procuraremos abordar é tanto a verossimilhança dos eventos fantásticos narrados por Rubião quanto o aspecto mágico de eventos absurdos, porém hodiernos. O objetivo deste trabalho é indicar onde o realismo mágico de Murilo Rubião desvela aquilo que muitas vezes se esconde ao estudioso das cidades, seja ele o urbanista, o psicólogo, o historiador, o arqueólogo: o cotidiano. O cotidiano e suas contradições, em especial a contradição inerente aos projetos ou ideias de cidades e as cidades enquanto tais, onde as pessoas não só habitam, transitam, ou visitam, mas, antes de tudo, vivem.

  • Baseada em etnografia realizada em um hospital público brasileiro especializado em assistência a doentes com câncer considerados sem possibilidades de cura, aliada à observação de congressos sobre Cuidados Paliativos e de pesquisa bibliográfica sobre o tema, apresento a trajetória do paciente a partir do diagnóstico de “fora de possibilidades terapêuticas”.  O hospital observado, na cidade do Rio de Janeiro, se insere no modelo denominado internacionalmente de Cuidados Paliativos, implantado na Inglaterra e Estados Unidos no final da década de 1960. Segundo seus fundadores, esta proposta opõe-se a uma prática médica eminentemente tecnologizada, produtora de uma morte solitária e “desumana”. Os Cuidados Paliativos voltam-se à “humanização” do morrer e sua equipe multiprofissional busca prestar assistência à “totalidade bio-psico-social-espiritual” dos pacientes e de seus familiares, na qual a meta seria a produção de uma “boa morte”. Para a equipe observada, há um modelo “ideal” a ser percorrido pelo doente até a morte: incorporação da nova identidade – “FPT”, aceitação desta condição, resolução das pendências da vida, despedida das pessoas próximas e, sobretudo, despedida do próprio corpo e da vida. A ambigüidade da posição deste novo sujeito – não mais um doente qualquer, mas um “FPT”, ainda com vida, vivenciando seu período final, tomando decisões sobre o tempo que ainda lhe resta – é analisada e comparada com a produção estrangeira que reflete sobre a assistência paliativa. Discuto especificamente algumas situações observadas, nas quais surgiram tensões e conflitos entre profissionais, doentes e familiares – relativas a distintas concepções de corpo, expressão de sentimentos, despedida e, sobretudo, indivíduo e pessoa. Por fim, são abordadas as diferentes construções históricas e sociais em torno da morte, do luto e do lugar ocupado pelo doente.

  • O presente trabalho é fruto de uma pesquisa de mesmo nome, iniciada em 2003 e vinculada ao Programa de Intervenção Voltado às Engrenagens e Territórios de Exclusão Social (PIVETES/UFF). Seu principal objetivo é colocar em análise as práticas que os psicólogos vêm produzindo no Judiciário, a saber, em Juizados da Infância e Juventude e em Varas de família no Estado do Rio de Janeiro. Para pensar o cotidiano desses profissionais e problematizar as instituições que vêm se afirmando nesse espaço, foram tomadas como ferramentas as noções de implicação, análise de implicações e sobreimplicação propostas por René Lourau. Através das entrevistas realizadas com os psicólogos, percebemos que o acúmulo de tarefas e a urgência em realizá-las, muitas vezes, possibilitam a constituição de um campo sobreimplicado, dificultando a análise das relações institucionais presentes nas práticas. Em contrapartida, encontramos também psicólogos que, fugindo de uma intervenção no campo do individual, onde a subjetividade é tomada como interioridade a ser diagnosticada ou interpretada, apostam na construção de uma prática que contextualiza sócio-historicamente o indivíduo como sujeito de direitos.

  • O corpo, na tradição metafísica ocidental, foi considerado um objeto. Platão é um autor relevante, nessa tradição, que sustenta a dicotomia corpo-alma, como duas naturezas totalmente heterogêneas. A alma é o propriamente humano, já o corpo é um vasilhame descartável, uma prisão que limita a essência do homem: um objeto que nos encadeia e nos cerceia. Partindo desta tradição, o corpo foi enunciado, codificado, interpretado e dominado nas relações sociais que tentaram regimentar e controlar essa corporalidade. Inúmeras conceituações objetivantes e dicotômicas sobre o corpo construíram uma memória e uma identidade corporais que o reduziram a uma coisa ou a uma mercadoria apropriável. Contudo, há outras formas de ver o corpo. Na leitura nietzschiana, por exemplo, o corpo é celebrado como uma multidão de impulsos criativos em jogo, como a dinâmica do devir que exprime as potências instintivas do homem; na linguagem mítica arcaica, através do corpo falam Dioniso e todas as forças salutares da terra, da vida.

  • Este artigo tem por objetivo uma melhor compreensão de um tipo de relacionamento sexual – a relação entre homens –, sobre o qual percebo haver uma carga de preconceitos, oriundos de um viés moral. Ao longo do desenvolvimento deste trabalho, o estudo de artigos, livros, dissertações e teses, nas áreas de psicologia e medicina, de diferentes autores que se dedicaram ao estudo do tema serviram de alicerce, com especial relevo aos trabalhos de Jurandir Freire Costa. No tocante ao recorte temporal, o texto passa, brevemente, pela Grécia e Roma Antiga, e discute o ocidente, especificamente o Brasil, nos séculos XIX e XX. Desta forma, o aprofundamento nos diferentes modos históricos de compreensão dessa forma específica de relação amorosa pareceu uma alternativa de auxílio à realização deste objetivo. É importante destacar que, ao aproximar estes modos históricos, o autor não tem por fim a simples comparação entre eles, mas sim dar atenção a uma diversidade de relações amorosas entre homens construídas ao longo dos tempos.

  • Nossa pesquisa procura descrever como surgiu o domínio da subjetividade, crucial para o surgimento da Psicologia. Recorremos ao trabalho de Michel Foucault, em sua História da Sexualidade, no que diz respeito ao surgimento do domínio da subjetividade, e ao de Fernando Vidal para entender o surgimento da Psicologia no século XVIII. Uma forma de compreender o que estamos definindo por subjetividade pode ser tomada a partir de uma das variantes do que Foucault chamou de cuidado de si em seus trabalhos dos anos 80. O cuidado de si diz respeito aos atos do indivíduo que o constituem como sujeito ético perante os códigos morais. Buscamos alguns indícios que poderiam nos levar ao cuidado de si próprio da Modernidade. O surgimento do domínio da subjetividade está vinculado à proliferação do discurso sobre a sexualidade a partir do século XVI, concomitante à intensificação da prática da confissão. As práticas de poder/saber originadas na confissão se transmutam numa scientia sexualis, difundindo seus efeitos na Medicina, na Pedagogia, na Demografia, nas práticas jurídicas, na polícia administrativa. Os rituais de confissão passam a funcionar nos esquemas da regularidade científica A sexualidade passa a ser um domínio penetrável por processos patológicos, solicitando intervenções terapêuticas e de normalização. Concomitantemente ao aparecimento da sexualidade como verdade do sujeito, no século XVIII também surge uma Psicologia que vincula outras formas de saberes de si com a noção de verdade no indivíduo, conforme nos mostra Fernando Vidal. No século XVIII, ocorre uma profusão de discursos sobre o sujeito, a Psicologia, a alma e outros aspectos filosóficos, teológicos e científicos não necessariamente vinculados à sexualidade. Todos esses discursos têm a proposta de examinar o sujeito, produzindo um novo campo discursivo a ser explorado. A verdade, então, passa pela Psicologia e por um conhecimento dos pormenores da alma humana. Aproxima-se, dessa forma, da idéia defendida por Foucault sobre a existência de uma verdade interiorizada no indivíduo. O que nos interessa, de fato, é mostrar como já no século XVIII havia a produção de saberes que buscavam examinar, desvendar e dissecar a interioridade do sujeito, a partir da noção de verdade, além de fomentar o campo da subjetividade, do qual surgiu a Psicologia.

  • Muito se questiona o papel do psicólogo, seus discursos e práticas enquanto agenciamento de controle e/ou assujeitamento. Pretendemos fazer uma cartografia do(a) processo/construção deste agente do poder-saber, o psicólogo, e – na medida/apesar das limitações/possibilidades dos autores – do psicólogo formado pela UERJ. O modelo disciplinar, homogêneo-hegemônico nas faculdades, as relações professor-aluno-universidade, o currículo, a pesquisa e extensão inscrevem-se como produtores de um certo psicólogo, formado para atender a um certo mercado. Será possível formar sem formatar? As linhas-de-fuga não estão fadadas a serem capturadas e submetidas à lógica consumista-tarefeira? Será possível formar um profissional catalisador/produtor de diferenças através da lógica e da temporalidade capitalistas? A formação psi (qualquer formação), os saberes precisam obedecer à lógica cartesiano-mercantilista – que se apresenta como natural e necessária – e aceitar relações mercantis de aula, pesquisa, pós-graduação? O que estamos fazendo de nós? “Como se chega a ser o que se é?”: queremos pensar o estudante, o curso, o profissional que (se) forma (n)esta máquina psico-lógica. Quais as implicações éticas-estéticas-políticas da formação em psicologia na sociedade que a cerca/atravessa/constitui? Não pretendemos responder; mas provocar questões mais potencializadoras, que possibilitem pensar-sentir-agir para aquém/além da lógica vigente. Talvez as questões não sejam “o que estudar?”, “como atuar?”; mas “que relações de poder e regimes de verdade tomam corpo na formação/produção do psicólogo?”. Não queremos soluções globalizantes/revolucionárias. Queremos sair do nosso lugar seguro e arriscar desterritorializações/experimentações. Relações de poder, produção de subjetividades não são conceitos/processos que existem/ocorrem (somente) fora da universidade. A academia possui um cotidiano, onde os saberes se constituem, onde pensamos-sentimos-agimos, emergimos e submergimos, inserimo-nos, construímos a história – constituímo-nos enquanto sujeitos da/à história. Nossa análise focaliza as potencialidades/limitações da produção de psicólogos. Cartografar a produção/construção do psicólogo enquanto agente do poder-saber é cartografar o cotidiano acadêmico.

  • Este trabalho constitui um ensaio provisório e exploratório, e uma primeira tentativa de sistematização panorâmica de leituras e questões de um programa mais longo de estudo, acerca da formação histórica e cultural das teorias da subjetividade, e que inclui as formulações freudianas e junguianas do inconsciente, as tradições marxiana e marxista, e os movimentos teóricos posteriores de esquerda. O estudo se inicia pela caracterização histórica e cultural das principais vertentes do movimento romântico nos séculos XVIII e XIX, indicando os antecedentes das formulações de inconsciente que desaguariam mais tarde em Freud e Jung, bem como as vertentes formadoras do pensamento marxiano. Em seguida, descreve as contribuições marxianas à abordagem da subjetividade, bem como seus limites e dificuldades. Finalmente, aponta como estas questões se desdobraram nos debates posteriores, nos principais desenvolvimentos históricos e teóricos de esquerda que abordaram a subjetividades no século XX.

  • Em 1962 a Psicologia foi regulamentada como profissão pela Lei 4119, porém só em 1971 deferiu-se a Lei 5766 que criou os Conselhos Regionais e Federal de Psicologia (sendo que os regionais só foram instalados em 1974). Em 20/08/1973 o Ministro do Trabalho deu a carta sindical à Associação Profissional dos Psicólogos de São Paulo para transformar-se em Sindicato dos Psicólogos. Portanto, compreendemos que há longa história subjacente à constituição da Psicologia como profissão regulamentada no país, porém na pesquisa bibliográfica realizada, encontramos pouco registro que se refere à construção da Psicologia a partir de suas entidades. Dessa forma, visamos fazer uma reflexão sobre as práticas das entidades de classe da Psicologia de São Paulo durante o período da ditadura militar à redemocratização do país (1969-1986) por meio de pesquisa documental e depoimentos de ex-participantes. Constatamos diferenças nas práticas das entidades no período da ditadura militar (anos 60/70) e o da abertura política (a partir de 1979), quando grupos da esquerda assumiram as entidades. Notamos que as práticas eram reflexos da conjuntura política do país mediada pela concepção da função social da Psicologia onde, nos anos 70, as entidades defendiam a Psicologia como fim, enquanto profissão e, a partir dos anos 80, com a redemocratização do país, começou a se problematizar a função política da Psicologia na sociedade brasileira. Observamos que a entrada da esquerda nas entidades acompanhou o mesmo movimento de transição das sociedades disciplinares para as sociedades de controle.

  • Analisando um tipo específico de correspondência jesuítica - as Litterae Indipetae -, evidenciou-se um dinamismo de elaboração da experiência revelador de um modo de vida baseado no que comumente chamamos psicologia filosófica aristotélico-tomista. É a este vivido descrito nas cartas e a este modo de viver específico (com suas devidas implicações fundamentais) que se dedica este artigo, buscando responder à pergunta: em que medida o conhecimento de si expresso a partir de lugares comuns próprios do gênero de correspondência que são e da forma de pensar dos jesuítas (num âmbito histórico-cultural-institucional peculiar) pode interessar à psicologia moderna? Resulta desta investigação, que a elaboração do conhecimento de si, neste âmbito preciso, parte do pressuposto de que o homem é uma unidade (corpo e alma, razão e fé, sensação e intelecção) e de que, vivendo ordenado (em si mesmo e no mundo que o circunda), realiza-se o seu ser por analogia ao Ser Divino.

  • Este artigo apresenta a Rádice - Revista de Psicologia, produzida por psicólogos cariocas entre 1976 e 1981. Esta revista foi de grande importância (intelectual e afetiva) para a geração que, durante o período da ditadura militar brasileira, graduava-se em psicologia. Levava aos seus leitores matérias sobre temas variados e polêmicos, não existentes nas revistas de psicologia da época, como a repressão política, o tratamento desumano nos hospitais psiquiátricos, a regulamentação da profissão de psicólogo, as terapias corporais, entre outros. Participava, com outras publicações "nanicas", do Comitê de Imprensa Alternativa, indicando sua participação ativa nos debates políticos ocorridos à época. A Rádice é, pois, um analisador da constituição histórica da psicologia carioca, sendo um dos poucos dispositivos de divulgação do pensamento de outras formas de se fazer psicologia.

  • O artigo é resultado de uma pesquisa histórica realizada sobre a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Sedes Sapientiae, que funcionou em São Paulo de 1933 a 1967, e o Instituto Sedes Sapientiae, que iniciou suas atividades em 1967. Foram utilizados documentos arquivados na PUC/SP, entrevistas gravadas em áudio ou publicadas em jornais e revistas, entrevistas realizadas com professores e alunos que participaram em diferentes momentos dessas duas instituições. O foco da análise aqui apresentado é a abertura dada, em dois cursos de graduação - pedagogia e psicologia -, e em cursos de especialização oferecidos nessas duas áreas, para uma perspectiva corporal, o que facilitou sua inclusão no campo da psicologia.

  • Desde a década de 1990, em grande parte das sociedades urbanas industrializadas vem se constituindo um fenômeno em torno das imagens ultra-sonográficas fetais. A ultra-sonografia, aplicada à obstetrícia, uma tecnologia utilizada a princípio visando a detecção de anomalias fetais, gradualmente transformou-se em objeto de consumo e ‘lazer’. As imagens fetais passaram a ser utilizadas com os mais variados propósitos, desde o discurso anti-aborto até a propaganda de produtos diversos. A partir dos anos 1940, ocorreu um rearranjo na obstetrícia que resultou, grosso modo, na passagem de um modelo de intervenção médica para um modelo ‘humanizado’ de monitoramento, no qual o esquadrinhamento das minúcias tornou-se um ponto-chave, para o qual a invenção da ultra-sonografia obstétrica, no final dos anos 50, teve um papel articulador fundamental. A produção do prazer de ver o feto – cujas imagens cinzentas e indistintas se transformaram em objeto de desejo – é a pedra de toque que une o útil ao agradável. As grávidas passaram a buscar ativamente as imagens fetais, submetendo-se prazerosamente às ultra-sonografias, no decorrer das quais os profissionais produzem narrativas visuais e discursivas. É construída uma subjetivação envolvendo as imagens, a gestante e o feto, ao mesmo tempo em que é produzida uma estetização das imagens, uma exteriorização do feto e uma mescla da imagem com o feto propriamente dito. No processo há como que um ocultamento das condições de produção destas imagens, o que reforça a noção de ‘independência’ do feto em relação à gestante. Esta situação, por seu turno, encontra-se inscrita em um outro processo mais amplo, no qual, em especial ao longo do século XX, a visualidade tornou-se culturalmente sobreposta aos outros sentidos. Nesse contexto a imagem técnica detém o status de produtora de verdades incontestáveis – médicas e não-médicas – e as imagens fetais estáticas, assim como os vídeos domésticos com imagens fetais gravadas adquirem um caráter similar ao do entretenimento proporcionado por ver fotos de viagem ou assistir a documentários, aliando o lazer ao – suposto – conhecimento do feto. Pode-se pensar neste conjunto articulado de processos como parte de um panopticismo que devassa corpos femininos e fetais, ao mesmo tempo normatizando-os e construindo novos sujeitos calcados em corporalidades virtuais.

  • Tomamos como base de análise material referente às pesquisas realizadas pelo PIVETES (Programa de Intervenção Voltado às Engrenagens e Territórios de Exclusão Social) no sentido de apontar algumas práticas presentes no judiciário. A partir de entrevistas realizadas com psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro identificamos, dentre as práticas que ali se instrumentalizam, as que poderiam estar fugindo aos modelos hegemônicos instituídos nesse encontro entre psicologia e judiciário. Seguimos os princípios da pesquisa-intervenção, que coloca em questão a neutralidade e objetividade do pesquisador, enfatizando a análise de suas implicações, investindo nas restituições possíveis e na participação dos coletivos em todas as instâncias da pesquisa. Nossas análises estão marcadas também por um enfoque histórico-genealógico trazido por Foucault que entende a história enquanto processualidade e campo de problematizações de práticas-discursos tidos e reproduzidos como naturais. Para pensar as práticas psi presentes no judiciário recorremos a Deleuze com suas linhas segmentarias, duras, flexíveis e linhas de fuga que se entrecruzam, se constituem juntas e se atravessam. Percebemos que, ao lado da construção de modelos duros de atuação, o trabalho de muitos psicólogos no judiciário tem sido também um instrumento para (re)colocar os sujeitos ali presentes – técnicos e usuários – como atores de suas histórias, na medida em que vão tomando parte ativa nas mesmas. Nas entrevistas realizadas, sobressaem falas que apontam os esforços desenvolvidos no sentido de criar espaços coletivos de discussão entre os técnicos, as diferentes equipes e instâncias do judiciário e outros estabelecimentos parceiros, como os Conselhos Tutelares. Entendemos ser fundamental dar visibilidade a tais práticas que, em seu cotidiano, vêm recusando saberes absolutos, totalizantes e percebidos como universais, e produzindo espaços de invenção e outras possibilidades de atuação.

  • As transformações urbanas operadas no corpo da cidade, os modos de objetivação engendrados nas práticas cientificistas e a literatura militante de Lima Barreto são as conexões delineadas por este trabalho quando decide investigar o panorama do Rio de Janeiro nos anos iniciais da modernização republicana. Tal via de pesquisa implica a utilização de recursos transdisciplinares na travessia de diferentes discursos, o que resulta na formulação de uma cartografia do romancista muito diferente das identidades já dadas por historiadores e pelas análises literárias mais conhecidas. Assumir esse percurso exige imbuir-se do pensamento da diferença, tanto nas interrogações foucaultianas da história quanto nas problematizações deleuzianas frente à arte literária, considerando que ambas as perspectivas convergem para a construção de um pensamento que se dedica a interrogar os modos de subjetivação – objetivo central deste trabalho. Captar as experimentações estéticas de Lima Barreto incita este trabalho a nuançar as saborosas ousadias do escritor. Assim, tateando suas linhas, pretende-se explorar a potência do texto barretiano em diagnosticar as agruras de uma conturbada sociabilidade, além de destacar a maneira como ele operava uma analítica das práticas sócio-discursivas-modernizantes importadas por setores da elite e implementadas pelas camadas dirigentes na cidade de feições marcadamente coloniais. Deve-se ressaltar que os escritos do romancista/cronista/contista... devem ser entendidos como uma região de acontecimentos a reverberar sentidos em uma literatura militante – máquina de guerra literária barretiana. Desse modo, as iluminações que a obra-vida de Lima Barreto suscita tornam também possível interrogar a maneira clássica de operar a noção de subjetividade, descortinando um possível para o pensamento em psicologia.

Última atualização da base de dados: 21/11/2024 18:57 (UTC)

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